O coronavírus pode mudar o mercado americano de HQs? | JUDAO.com.br

Todo o esquema de distribuição dos comics na Terra do Tio Sam, que já funcionava da maneira bem diferente das coisas no Brasil, foi virado do avesso graças à covid-19. O digital enfim vai ser adotado como primeira opção DE VEZ?

Dia destes, quando me perguntaram quais eram as coisas mais cotidianas das quais eu sentia falta neste momento de confinamento e distanciamento social, meu top 3 foi “tomar café na padaria”, “passear com as crianças no parque” e “ir na banca comprar gibi”. Este terceiro item pode parecer inusitado pra alguns, mas apesar de eu já ler muita coisa em formato digital e ainda fazer compras de encadernados em sites de e-commerce pra receber no conforto do meu lar, a rotina de colar na banca do lado de casa pra trocar ideia com o jornaleiro e comprar as mensais ainda existe na minha vida, talvez numa pegada quase nostálgica.

No entanto, a gente sabe que esta coisa de “banca” tá longe de ser realidade no mercado americano, por exemplo. A gente até publicou uma matéria aqui tem uns anos, explicando a diferença entre como funciona o universo dos gibis lá e cá. São as comic shops que ditam o sucesso (e o fracasso) de qualquer coisa por lá, compondo o chamado “mercado direto” — só que, sem distribuição, sem caminhões levando gibis fisicamente para os lugares, não importa se são livrarias, lojas de gibis ou bancas, não tem HQ. Ponto. E é aí que entra uma gigante americana chamada Diamond, que recebe as solicitações das lojas (que informam quais títulos querem vender) para as editoras (que enviam por meio da distribuidora as publicações).

Se as editoras estão com os funcionários afastados e não produzem e imprimem seus gibis, o que vai chegar nas lojas via distribuidoras? Nada, é claro. Pois bem, da mesma forma que o mundo do cinema pode estraçalhar as suas janelas de uma vez por todas, o mercado dos gibis também pode ser pressionado a mudar de vez para aquele palavrão outrora chamado “digital”.

Digamos que nem precisamos te contar que, nos últimos anos, cresceu bastante a venda de gibis digitais para tablets, smartphones e e-readers. O ComiXology se consolidou como a principal força desse mercado, inclusive fornecendo tecnologia para que Marvel, DC e Image façam seus próprios aplicativos e sites de venda. Obviamente que as editoras só têm elogios, liberadas do custo da impressão e da distribuição e com margens de lucro maiores, sem a limitação da tiragem. Até o último mês, uma revista em formato digital chegava JUNTO com a física e custando o mesmo preço (algumas semanas depois, o valor do digital diminuía), tentando não “canibalizar” o trabalho dos eternos parceiros das comic shops — que, como você deve imaginar, não são exatameeeeeeeeeeeente os maiores fãs da estratégia de ver os principais lançamentos disponíveis ao alcance de um clique.

Mas aí veio a realidade da covid-19. E quem achava que ela não ia mudar o jeito de ler seus gibizinhos, tá entendendo tudo errado.

Pela primeira vez na história de mais de 80 anos dos quadrinhos mainstream americanos, por exemplo, o último dia 1o de abril, a tradicional quarta-feira quando as revistas chegariam às comic shops, foi marcado pela ausência completa de publicações físicas, para desespero dos vendedores. Afinal, sem considerar serviços de assinatura como o Marvel Unlimited ou o DC Universe, leitores gastaram US$ 516 milhões de dólares em publicações impressas ao longo de 2018, em comparação com cerca de US$ 100 milhões no digital (os dados do ano passado ainda não estão consolidados).

Assim sendo, qual seria a alternativa aqui? Seguir com os planos e lançar as revistas em formato digital mesmo? Os fãs amariam, não perderiam a continuidade das aventuras dos seus personagens favoritos e ainda dentro do cronograma esperado. Mas isso significaria uma “desvalorização” da versão impressa quando e SE ela chegar às lojas mais pra frente. Quem, além do colecionador mais hardcore, vai gastar seu precioso dinheiro com aquele número mensal padrão, que já leu semanas antes e cujo único objetivo é te prender na virada de trama da vez?

Procuradas pelo THR, grandes editoras como Image Comics, IDW Publishing, Oni Press e Dark Horse Comics confirmaram que nenhum lançamento seria disponibilizado via ComiXology enquanto seus gibis físicos não fossem entregues via Diamond Distributors.

E não se sabe, de fato, quando a situação deve ser revertida igualmente pelo lado do distribuidor — já que, numa comunicação oficial do presidente da Geppi Family Enterprises, empresa-mãe da Diamond, Stan Heidmann, obtida com exclusividade pelo Newsarama, afirmou aos seus fornecedores (aka as editoras de HQs) que os pagamentos da última semana, pelo menos, serão mantidos em “suspenso” graças aos problemas de caixa que a empresa está sofrendo, já que também não está sendo paga por seus clientes (aka as lojas de quadrinhos, sacou o lance?). “Embora o impacto total desta epidemia ainda seja desconhecido, uma coisa é certa: a cadeira de distribuição sofreu implicações financeiras em toda a indústria que não pode ser ignoradas”, afirmou o executivo.

“Conforme esta situação evolui, estamos comprometidos em construir um plano para pagamentos futuros e teremos mais informações para compartilhar”, complementa Heidmann. “Obrigado por sua paciência e compreensão”. Lojas de quadrinhos não podem abrir, logo não podem vender. Não têm dinheiro para pagar ao distribuidor. E logo, o distribuidor não consegue pagar a editora de gibis. Bingo. Todo mundo tá numa sinuca.

Mesmo o tradicionalíssimo Free Comic Book Day, que rolaria no primeiro domingo de maio, iniciativa da Diamond pra ampliar o tráfego às lojas, acabou sendo cancelado. A ideia seria torná-lo um Free Comic Book May, uma celebração que durasse o mês inteiro, para ajudar a desovar tudo que ficou parado durante abril, coisa e tal. Mas claro que pensar nisso acontecendo daqui UM MÊS é minimamente um ato de otimismo EXTREMO e eles optaram pelo adiamento, ainda sem previsão oficial para uma nova data.

“Chegamos num momento que tememos a vida toda”, afirmou Ed Greenberg, dono da rede de lojas de HQs Collector’s Paradise, da região de Los Angeles, em entrevista ao THR. “Vendemos quadrinhos há quase 26 anos e esta é realmente a primeira vez que estamos incertos sobre o futuro da nossa loja, da nossa indústria e da nossa forma de arte favorita”. Claro que mesmo antes da pandemia, as lojas vinham lutando pra se reinventar como lugares que fossem acolhedores para muito mais do que o público tóxico formado pelo combo do homem branco, hétero, cis e conservador que não queria mudança alguma em seus preciosos quadrinhos. Mas a quarentena torna tudo ainda mais difícil.

“Tô muito feliz de conseguir pagar minhas contas, mas não vou conseguir mais fazer isso se minha capacidade de vender aos consumidores for seriamente limitada”, conclui, de maneira meio óbvia até, Ryan Higgins, dono da Comics Conspiracy, loja da cidade californiana de Sunnyvale. E isso porque ele ainda tem a facilidade de permitir que seus clientes encomendem e paguem online por meio da plataforma ComicHub. Mesmo assim, ele teme que nem isso o ajude de fato a longo prazo. “A loja online é incrível, mas a maior parte do nosso negócio ainda diz respeito ao consumidor que vem pra cá”.

Veja, pra quem foi procurar novidades nas lojas digitais na última quarta, dia 1o, é claro que encontrou — dizer que não teve nada é um exagero. Rolaram aquelas edições colecionáveis da Marvel e da DC, por exemplo, assim como produtos que já tinham sido enviados fisicamente e alguns títulos que, por natureza, já são 100% digitais, coisa que as editoras vêm testando tem um tempo. Mas estamos falando de no máximo 20 e poucas publicações, contra as centenas que inundam as lojas americanas toda quarta-feira. É uma crise que esta indústria jamais viveu nos EUA, seja durante a Segunda Guerra Mundial ou mesmo o 11 de setembro.

Agora, a principal pergunta, que deve estar rondando a sua cabeça neste momento: e como estão se posicionando, neste momento, as duas grandes editoras do mercado? Embora nenhuma das duas tenha lançado nada de novo na semana passada e, segundo consta, tampouco vão lançar nesta semana (as perspectivas para esta quarta, dia 8, são de zero gibis novos vindos de ambas), a DC foi a primeira a se manifestar, soltando uma carta para os revendedores do mercado direto dizendo que, além de tentar encontrar “métodos alternativos de distribuição” neste período — se eles tiverem algum tipo de superpoder que os proteja da transmissão do coronavírus, de fato eu gostaria de saber — eles estariam conversando com a Diamond para encontrar uma solução que ajude a levar “produtos para quem quer ou precisa”. Assim, talveeeeeeeeeeeez esteja seja uma frase um tanto irresponsável, haja vista que #FiqueEmCasa não quer dizer necessariamente #FiqueEmCasaMasSaiaPraComprarQuadrinhos, né?

Uma alternativa encontrada pela editora, no entanto, foi cravar que todas as publicações com datas de lançamento em lojas entre 18 de março e 24 de junho serão totalmente retornáveis. Isso significa que os gibis poderão ser devolvidos e a DC se oferece inclusive para arcar com o ônus dos custos de envio.

Além disso, a WarnerMedia, conglomerado que é DONO da DC Comics, anunciou que vai doar US$ 250.000 para a Book Industry Charitable Foundation, organização sem fins lucrativos cujo objetivo é justamente auxiliar e oferecer apoio financeiro a quem trabalha no mercado de lojas de quadrinhos em situações de emergência tipo desastres naturais, crises financeiras ou, bom, alguma coisa como ESTA. Além disso, o todo-poderoso criativo da Distinta Concorrência, Jim Lee, vai leiloar 60 desenhos originais de personagens da DC justamente para ajudar a mesma causa. A ideia é que as ofertas por cada ilustração possam ser feitas ao longo de três dias, NESTE LINK do eBay. As primeiras peças foram do Asa Noturna e do Bizarro.

No caso da Marvel, por enquanto, além do anúncio de descontos para lojas que fossem permanecer abertas que acabou sendo oferecido ANTES do pico da quarentena e do anúncio da paralisação da Diamond, sabe-se que rolou uma carta de agradecimento, assinada pelo próprio Dan Buckley (atual presidente da Marvel Entertainment), na qual rolava uma garantia de que nenhum título digital sairia à frente dos impressos, aquela coisa toda. Mas ele fez questão de deixar claro, nesta comunicação oficial enviada diretamente às lojas: “esta é uma situação fluída, com detalhes mudando todos os dias, então agradecemos a paciência e compreensão de todos conforme passamos por isso”.

A galera do Polygon apurou, no entanto, que cerca de 1/3 dos atuais títulos da editora terão suas linhas de produção completamente pausadas entre maio e junho. Embora os gibis que entram na geladeira não tenham sido confirmados, a garantia é de que os talentos envolvidos na produção sejam integralmente pagos por seu trabalho até o momento (vamos lá que isso é o mínimo, tá).

E aqui no Brasil?

Bom, a gente sabe que a galera independente vai se virando do jeito que dá, vendendo seus trampos pela internet, por vezes físicos (contando com os Correios), por vezes até mesmo digitais. E as editoras menores, tipo uma Draco ou Balão Editorial, já têm suas próprias lojas na web desde sempre. Mas como funciona, em tempos de isolamento social, para uma Panini da vida, que publica os grandalhões da Marvel e da DC tanto em formatos encadernados pra livrarias quanto nos mensais que ainda dependem pra caramba do modo banca de ser?

“A Panini preza pela saúde e o bem-estar de seus funcionários. Por conta disso, a empresa buscou formas adequadas de manter as operações, bem como as operações de distribuição que continuam com equipes responsáveis para manter o mercado abastecido”, afirma, com exclusividade pro JUDÃO.com.br, Marcelo Adriano da Silva, gerente de marketing da empresa. “Para o canal de bancas, a Panini está expedindo material para todos os distribuidores, exceto para aqueles que estão com bancas fechadas por determinação dos governos municipais ou estaduais. Esses nos solicitaram a suspensão das remessas”.

Ele reforça que a empresa também tem sua loja online e ainda disponibiliza tudo (incluindo mensais) numa Amazon da vida. “Estamos em constante atenção em relação aos lançamentos e, até o momento, tivemos ajustes em títulos que acompanham os filmes que tiveram o lançamento postergado, como Novos Mutantes e Mulher Maravilha. Estamos acompanhando os estúdios e analisando se o momento que estamos vivendo terá impacto nos próximos lançamentos”.