O disco do Sepultura que seria impossível com os Cavalera | JUDAO.com.br

Mantendo o pique criativo em uma fase não apenas intensa mas também madura e diversa, a banda crava pilares de relevância em sua “era Derrick Green” sem precisar tratar a porra do passado como muleta

“A mudança é necessária”. A frase, parte de uma entrevista que Derrick Green concedeu recentemente ao podcast Scars And Guitars, veio como uma resposta do vocalista do Sepultura sobre os tais pedidos insistentes por uma turnê de reunião da formação clássica. “Acho que é natural para algumas pessoas gravitar ao redor de algo relativo ao passado e, talvez, seja assim que prefiram manter suas cabeças. Nunca quis ser assim, porque sou um artista e, para mim, é importante evoluir. Não ligo se outras pessoas ficam presas ao passado. Só não quero isso para mim”.

Gloria Cavalera, esposa do Max (você sabe, fundador, ex-vocalista, aquela história) ficou puta da vida, xingou muito nas redes sociais e até disse que o Derrick (justamente o Derrick, o mais sussa dos caras todos envolvidos neste imbróglio), “precisa falar de Max e Iggor para ter repercussão na imprensa”? Sim, isso aconteceu. Ela ainda teve a coragem de dizer que Max e Iggor nunca falaram de reunião — sendo que, bom, ESTE texto aqui prova justamente o contrário. Mas enfim. O fato é que, apesar do Derrick estar CLARAMENTE dando um recado aos fãs e não aos Cavalera, o que ele disse é acertado tanto para um quanto para o outro caso.

Vamos pegar, por exemplo, o recém-lançado disco Quadra, o mais novo da discografia de inéditas do Sepultura. Absolutamente coerente com tudo que a banda vem lançando desde Kairos (2011), passando pelos igualmente interessantes The Mediator Between Head and Hands Must Be the Heart (2013) e Machine Messiah (2017), o álbum traz não só um Sepultura mantendo-se renovado, em seu melhor momento nesta “fase” com Derrick à frente dos vocais (ainda acho foda falar de “fase” quando ele está há 22 anos no posto, mas tudo bem), mas também um Sepultura disposto a arriscar, a correr riscos que eu não os imagino correndo caso Max e Iggor ainda estivessem na banda, a ter o passado apenas como legado e não como muleta criativa.

Quadra é um Sepultura se levando a sério de verdade, se mantendo atrás da linha na areia e foda-se caso você ache que eles ainda deveriam ser uma banda cover tocando variações de Chaos A.D. ou Roots. É um Sepultura se tornando uma banda que as viúvas dos Cavalera vão ter cada vez mais motivos pra odiar. Eu só tenho a agradecer por isso. Porque, com o NOME que o grupo tem, tava fácil deitar em berço esplêndido e ficar só esperando os louros, fazendo turnês de comemoração de discos clássicos, aquela história toda... Seria um caminho tão fácil, inclusive comercialmente. E há quem ainda diga “eles estão se aproveitando do nome Sepultura”. Porra nenhuma. Eles tão é construindo um novo nome pro Sepultura, isso sim.

Antes de qualquer coisa, vamos lá, eu tenho UM MILHÃO de ressalvas à postura “em cima do muro” do Andreas Kisser, guitarrista e atual líder/porta-voz da banda, que outrora gravou coisas com letras bastante incisivas como Territory e Refuse/Resist. Da mesma forma, eu não apenas amo os clássicos do grupo como também ADORO ver tanto o Max quanto principalmente o Iggor se posicionando de maneira direta e contundente contra fascistas e demais bichos escrotos que saem dos esgotos. Mas não dá pra negar: o caminho MUSICAL que o Andreas escolheu para o Sepultura nos últimos anos é vibrante de uma forma que não dá pra ignorar, servindo como uma espécie de vento fresco no cenário metálico mais mainstream.

Tem isso e tem, como eu disse na minha resenha de Machine Messiah, o Derrick, né. “Eu realmente simpatizo com o cara. Carismático, acessível, divertido, já tive a chance de entrevistá-lo duas vezes e tive certeza de que ele caminha no espectro diametralmente oposto aos fascistas que pareciam estar em volta dele”, foi o que escrevi e mantenho.

Conceitualmente, Quadra é muito claro em sua proposta, com 12 faixas divididas em QUATRO trincas de faixas, como se fossem os lados A, B, C e D de um antigo disco de vinil (que, sim, só tinha dois lados, mas vocês entendeu a ideia). Abrindo os trabalhos com Isolation, Means To An End e Last Time, a banda já inaugura o cardápio no modo pancadaria pura, meio que dizendo “tá bom, era isso que vocês queriam, então toma, olha só como a gente sabe fazer”. Metalzão forte, musculoso, o mais fino da guitarra cada vez mais afiada do Andreas e da batera monstruosa do Eloy Casagrande, que assumiu a função sem medo da pressão e sempre faz questão de mostrar a que veio.

São três ótimas músicas pra bater cabeça? São sim. Mas Quadra reserva outras surpresas que são verdadeiras joias aqui. Escute, por exemplo, a batucada moderna de Capital Enslavement, um groove lindão que respeita a tradição de um Roots da vida mas não deixa de flertar com elementos sutilmente eletrônicos. Ou quem sabe o delicado dedilhado de violão de Guardians of Earth (aquele mesmo que se repete ao longo de toda a faixa instrumental que dá título ao álbum, aliás), algo surpreendente em meio a uma coleção de faixas que traga a palavra “Sepultura” na capa, né? Pois é. Mas não deveria ser. ¯\_(ツ)_/¯

Você escuta dois exemplares como Autem e Raging Void e percebe que o combo brasileiro consegue fazer metal moderno, que soa novo, atual, relevante, ombro a ombro com qualquer uma das bandas que ano a ano estão nas listas de mais inovadoras e surpreendentes — por exemplo, as duas canções poderiam ter sido TRANQUILAMENTE gravadas por um Gojira da vida e ninguém sentiria a diferença. Da mesma forma, voltando ao assunto Derrick, neste disco temos novamente o cara explorando outras possibilidades vocais além do gutural fodidamente agressivo. Repare, por exemplo, em Agony of Defeat. Se estes fossem outros tempos, é uma canção daquele tipo de metal bastante palatável, que podia TRANQUILAMENTE tocar numa rádio rock qualquer sem ter reclamações sobre ser “agressivo” demais. Um disco inteiro nesta pegada e, bingo, teríamos o Black Album do Sepultura.

Pra encerrar, eis que vem Fear;Pain;Chaos;Suffering, com os vocais convidados de Emmily Barreto, a frontwoman do Far From Alaska. Uma ideia absolutamente genial, uma contraposição com o Derrick que não só funciona benzaço como, de alguma forma, também dialoga perfeitamente com esta pegada quase mais “pop” de Agony of Defeat. Sim, existe espaço até para este ~palavrão num disco do Sepultura, vai se acostumando aí.

Se Quadra é mais um importante passo em direção ao Sepultura ousando cada vez, a grande pergunta que sempre rondou a minha cabeça ainda permanece: se os caras querem tanto se permitir, por que diabos os OUVINTES também não se permitem um pouco mais?

A resposta permanece um mistério. Não, na verdade, eu sei bem a resposta. E você também.