Panini surpreende ao lançar encadernado de 1984, estrelado por um dos mais obscuros personagens criados por Jack Kirby para a editora
“Toma este aqui, tenho certeza que você vai curtir”. A recomendação de um amigo meu veio seguida do empréstimo de um gibi, em mãos, que ele fez questão que eu prometesse que devolveria logo. Estávamos em algum momento do começo dos anos 90, se minha memória não me falha, e eu intensificava ainda mais meu consumo dos quadrinhos da Marvel e da DC. A revista era um número de Heróis da TV (clássico da Editora Abril), com histórias dos mais diferentes personagens. “Qual foi a história que você falou mesmo?”, perguntei. “Esta aqui, ó. Do Homem-Máquina”, me explicou ele.
Num primeiro momento de inocência, cheguei até a imaginar que aquele Machine Man pudesse ser o mesmo da série japonesa exibida pela Bandeirantes, o cara que tinha uma capa transparente, se transformava em um carro e carregava por aí um insuportável robô-miniatura em forma de bola de beisebol — e, bom, era “Heróis da TV”. Mas não, não, nada a ver.
O Homem-Máquina da Marvel é um androide que atende pela identidade secreta de Aaron Stack ou pelo número de série X-51, tanto faz. E a tal história que o amigo me recomendava era a minissérie em quatro partes publicada nos EUA entre Outubro de 1984 e J aneiro de 1985, escrita por Tom DeFalco e com arte de Herb Trimpe e Barry Windsor-Smith (que faz a arte-final dos três primeiros números mas assume o pacote completo na edição final).
E é esta mini, vejam vocês, praticamente desconhecida e protagonizada por um personagem absolutamente B da Casa das Ideias, que a Panini lança em uma bela edição única de capa dura, metalizada e as porras todas.
Criado em 1977 pelo mestre Jack Kirby, na oitava edição da revista 2001: A Space Odyssey (não por acaso, uma revista com conceitos baseados no filme de Stanley Kubrick e no livro de Arthur C.Clarke), o Machine Man antes foi batizado de Mister Machine. Desenvolvido pelo especialista em robótica Dr. Abel Stack, X-51 foi o integrante de um exército de robôs sencientes que vinham sendo desenvolvidos pelo exército. No entanto, todos os 50 robôs anteriores a ele enlouqueceram assim que adquiriram consciência e se tornaram psicóticos. Com o 51 tudo pareceu uma boa ideia (entendeu o que eu fiz aqui?) e ele acabou sendo criado por Abel como um filho, ganhando um rosto humanoide e tudo, até que o cientista morreu tentando proteger a vida do seu homem-máquina. O androide assumiria o nome humano de Aaron Stack e fugiria, para tentar fazer o bem.
Além de conseguir esticar os seus membros mecânicos e ter superforça, superagilidade e super-resistência (também, com um corpo à base de adamantium...), isso sem contar a capacidade analítica e de raciocínio rápido de uma máquina e o poder de voo graças a uns tais discos de antigravidade, seus dedos eram equipados com uma enorme variedade de aparatos. Eram entradas para se conectar a qualquer computador, radares, antenas de rádio, detectores de gás, lasers e até uma arma que atirava munição de uma Magnum .357 (eram outros tempos, afinal).
Em 78, o Homem-Máquina ganharia a própria revista, escrita e desenhada por Kirby, na qual foi devidamente incorporado ao mundinho da Marvel ao longo de 9 edições. Viria o primeiro cancelamento. O robô logo teria espaço em três edições do Hulk, como coadjuvante, e aí a Marvel resolveu arriscar novamente, depois de nove meses de hiato, reiniciando o título do Homem-Máquina a partir da edição 10. Foi neste período que, além da inteligência, Aaron passou a desenvolver também emoções. A dupla Marv Wolfman / Steve Ditko cuidou das histórias durante um tempo, dando um tom diferente daquele que Kirby tinha desenvolvido anteriormente. No número 15, no entanto, chegaria um novo roteirista: Tom DeFalco. Mas seu trabalho duraria pouco e, quatro números depois, o Homem-Máquina seria novamente cancelado.
Seu renascimento viria com esta tal minissérie – que, na real, se passa em 2020. Não deixa de ser curioso ver que este mundo distópico que à época estava distante 35 anos mas agora está a meros quatro, tenha aquela cara bem cyperpunk. Aliás, um cyberpunk misturado com anos 80, né, em especial pelo colorido exagerado das roupas, pelos cabelos, pelas maquiagens... Dá facilmente para imaginar que algum momento o Culture Club ou o Wham! iam entrar cantando algum daqueles hits-chiclete divertidíssimos para gravar um videoclipe.
Ainda na pegada retrô, aliás, a Panini acertou na mosca quando optou pela tradução para a nossa realidade de um dos momentos mais infames da história: quando o Homem-Máquina acaba sendo derrubado pelo gênio da equipe usando um disruptor robótico (ou algo assim), ele fica meio zonzo, quase bêbado. E enquanto é carregado de lá pra cá aos trancos e barrancos, o robô fica cantarolando velhos jingles publicitários. Em português, tome coisas como “pipoca na panela, começa a arrebentar” – cuja continuação eu tenho certeza que os trintões sabem fazer no piloto automático.
A trama da minissérie não é lá das mais originais, vá lá, mas tem seu charme. Desligado em 1985, o Homem-Máquina é acidentalmente encontrado e religado pelos Sucateiros da Madrugada, um grupo de rebeldes que saqueiam os lixos industriais em busca de peças reaproveitáveis. A Terra se tornou um lugar hostil, comandado essencialmente por quem detém os avanços tecnológicos – e uma destas pessoas é ninguém menos do que Sunset Bain. Anteriormente uma vilã que infernizou a vida não apenas do Homem-Máquina mas também do Homem de Ferro, agora ela é uma mulher de negócios...mas que tem ao seu lado um rosto bastante familiar do passado do X-51. Trazido de volta à vida, o herói pretende trazer paz a este futuro e acabar de vez com os conflitos entre facções, provando que tem mais coração e alma do que muitos dos seres humanos que tentam sobreviver em meio a imensos arranha-céus e carros que voam (sempre eles).
Homem-Máquina, a revista, é simples, direta ao ponto, sem grandes rodeios e muito divertida, o tipo de história que daria um excelente filme da Sessão da Tarde – e que, se tivesse sido rodado em plenos anos 80, melhor ainda. Um de seus grandes pontos altos, no entanto, é que ela é o retrato de uma Marvel mais inocente, de tempos nos quais daria pra ler tranquilamente uma revista qualquer escolhida a esmo na banca mais próxima, sem se preocupar com continuidade, com entrelaçamentos, com a edição anterior, a próxima ou zilhões de outras publicadas nos últimos anos.
Qualquer um pode ler este Homem-Máquina, de verdade, sem pré-requisito algum. Dizer isso de uma HQ Marvel ou DC nos dias de hoje é tão raro quanto seria encontrar um robô com consciência humana bem no meio do lixão. E vamos esquecer o fato de que a Marvel, hoje, considera esta história como sendo um “futuro divergente” da chamada Terra-8410, que não é a mesma Terra 616 onde se passa a sua cronologia oficial. Deixa pra lá. Curta a história e pense que talvez o Homem-Aranha tenha ensinado um pouco das piadas de tiozão que o Homem-Máquina usa no meio das lutas.
Detalhe curioso para os atuais leitores da Marvel: um dos personagens que surgem no meio da história, o Homem de Ferro, não é o Tony Stark que todo mundo conhece – mas sim um certo Arno Stark, que comprou os direitos do nome e de utilização de uma versão da armadura. Na atual cronologia, Arno é o irmão de Tony, mantido oculto durante anos – na verdade, o filho legítimo de Howard e Maria Stark, já que Tony é adotado. Com a saúde debilitada e correndo risco de vida, Arno é obrigado a utilizar um exoesqueleto – que, curiosamente, tem a inscrição MMXX. Nada menos do que a expressão em números romanos para 2020. ;)
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