Comédia de humor negro sobre o mundinho corporativo, o primeiro filme live-action dirigido pelo criador de Beavis e Butt-Head foi um fracasso de bilheteria, mas se tornou um filme cult que virou sucesso de vendas em home vídeo
Tripalium. A palavra do latim que batizava um instrumento romano de tortura, um tripé formado por três estacas cravadas no chão, formando uma pirâmide que era usada para disciplinar os escravos é a expressão que daria origem à palavra “trabalho”. Faz sentido? Bom, se você perguntar pro Peter Gibbons (Ron Livingston), protagonista de Como Enlouquecer Seu Chefe (1999), com certeza.
“Aí, eu tava sentado no meu cubículo e cheguei à conclusão que, desde que comecei a trabalhar, cada dia da minha vida se tornava sempre pior do que o dia anterior”, diz o cara, programador frustrado da conceituada (?) Initech. “Então, isso significa que toda vez que você encontrar comigo, vai ser sempre o pior dia da minha vida”.
Embora tenha sido rodado em Austin, no Texas, o filme faz referência direta a um episódio que rolou na Califórnia, na região de San Francisco, no meio dos anos 1980. Foi quando o diretor Mike Judge, criador da dupla Beavis & Butt-Head, teve um emprego temporário colocando um monte de pedidos de compra em ordem alfabética (!). Mais tarde, rolaria ainda uma passagem como engenheiro de software bem no coração do que se tornaria o Vale do Silício. “Foi horrível”, confessa ele ao NY Daily News. “Eles acreditavam muito em alguma coisa, mas eu não sei bem o quê”.
Esta passagem pelo universo corporativo fez Judge desenvolver seu primeiro projeto em animação, uma série de quatro curtas batizada de Milton, sobre o cotidiano de um trabalhador desmotivado e fracassado e seu chefe, o burocrata babaca obcecado por relatórios conhecido como Bill Lumbergh.
É, ele mesmo. :D
Quando, depois do filme dos fãs de metal cabeça-oca, ele teve a chance de dirigir seu primeiro longa live action, o cara foi buscar inspiração justamente neste dois personagens (exibidos com seu traço e sua voz na Liquid Television e no Saturday Night Live), que acabaram até fazendo parte do filme. A ideia do estúdio, aliás, era que ele fizesse uma adaptação total e completa dos curtas, com Milton como protagonista, inspirados no sucesso mais pastelão de Quem Vai Ficar Com Mary?, mas Judge pulou fora e preferiu ampliar o elenco, transformando o sujeito em coadjuvante. “Muita gente lá defendia que o filme fosse uma alegoria como Wall Street ou Brazil, mas eu preferi fazer uma parada bem sem glamour mesmo, o tipo de trabalhinho sem graça que eu tive no passado”.
Na história, Peter odeia o seu trabalho. Acaba tratando tudo com desdém, empurrando o que pode com a barriga e entregando só o necessário para evitar ser mandado embora. Torna-se um verdadeiro mestre na arte da procrastinação, fugindo o máximo que consegue das toneladas de papelada que lhe pede sem parar o VP da área, o desprezível Bill Lumbergh. Vivendo esta vida miserável de memorandos (os tais TPS), o dia da camiseta havaiana e bolos sem graça para celebrar os aniversariantes do mês, ele acaba topando visitar uma terapeuta especializada em hipnose para ver se encara as coisas de um jeito diferente. E é aí que tudo muda e, num passe de mágica, Peter se torna o senhor absoluto do “foda-se”.
Com essa postura de “não poderia me importar menos”, ele se transforma no pesadelo de seus chefes, mas se torna de alguma forma o queridinho dos consultores contratados para uma operação de redução de quadro de funcionários na firma. E, ao lado dos amigos Samir Nagheenanajar e Michael Bolton (que, sim, tem o mesmo nome do cantor que ele simplesmente DETESTA), começa um plano para derrubar Bill, o ditador de suspensórios, e, se der, a empresa toda no processo.
A jornada do trio tem seu ápice glorioso numa cena que é uma espécie de CATARSE pra todo mundo que já trampou em um escritório do tipo (este que vos escreve, por exemplo). Eu diria até que é um daqueles momentos icônicos do cinema, quando eles capturam uma impressora, levam para um campo aberto e a destroem na base das cacetadas, com um taco de baseball — tudo ao som de Still, um gangsta rap violento dos caras do Geto Boys. “Die, motherfucker, die”, diz a letra.
Que glória. Que fúria. Queria muito. Tipo AGORA.
Mas parece que nem todo mundo tava lá muito satisfeito com o filme que ele construiu. “Os executivos não gostaram muito do resultado final”, confessa Judge ao EW. “Eles ficavam gritando pra mim ‘mais energia, mais energia, vamos precisar rodar isso de novo’. E tinha um que dizia ‘eu só queria que este filme fosse divertido’”, brinca ele.
No fim, o que parecia uma aposta certeira da Fox naquele camarada que tava fazendo tanto sucesso na MTV acabou sendo um fracasso de bilheteria. Com orçamento de US$ 10 milhões, Como Enlouquecer Sem Chefe apenas se pagou com o que arrecadou nos EUA. Lucro praticamente zero, com os executivos da raposa admitindo mais tarde que erraram no marketing e venderam o tipo de humor de Judge de maneira diferente, como se fosse uma história meio American Pie.
A história toda podia ter acabado nestes pobres relatórios de bilheteria. Só que, dois anos depois, quando o canal Comedy Central exibiu o filme, quase 1,5 milhão de espectadores sintonizaram pra ver a bagaça. Ao longo dos próximos dois anos, Como Enlouquecer Seu Chefe já tinha sido reprisado por eles mais de 35 vezes e, quando finalmente foi lançado em DVD/VHS, se tornou um hit que simplesmente ninguém esperava, faturando MUITO mais do que em sua passagem pelos cinemas e, surpreendentemente, mais até do que performaram alguns medalhões da Fox na época. Logo na abertura, em 2003, foram mais de 2 milhões de cópias vendidas, tornando-se o campeão de vendas do estúdio no ano. Ao final de 2006, apenas nos EUA, já tinham sido comercializadas nada menos do que 6 milhões de unidades do filme. Um recorde.
Judge admite que mais pessoas já o pararam para falar sobre esta obra do que sobre qualquer produção na qual tenha se envolvido na vida, incluindo aí ainda a sitcom Silicon Valley que, vamos ser honestos, tem um quê de herdeira da história de Peter Gibbons. O diretor chegou a ser procurado pela Fox para uma sequência, mas negou de imediato. “Foi uma coisa muito legal de fazer, mas eu tive que lutar por cada decisão: pela trilha sonora, pelo elenco, por tudo”, explicou pro AV Club. O mais próximo de uma pessoa famosa que eles tinham, na época, era Jennifer Aniston, que ainda não era A Jennifer Aniston de hoje. E a trilha, com estas bandas de rap de sonoridade mais porradeira e com letras cheias de palavrões, deixaram os engravatados de cabelos em pé.
“Mas aí, quando a bilheteria não foi legal, eu pensei ‘ah, tá bom, quer saber, eles tavam certos’. Mas conforme os anos passaram e ele foi se tornando mais e mais popular e dando mais e mais grana, me senti meio vingado”, diz.
Tanto ele quanto Ron Livingston já disseram em muitas ocasiões que foram parados por pessoas dizendo “cara, eu larguei meu emprego por sua causa”. Mas como a galera parecia dizer isso com satisfação, com a certeza de ter tomado a decisão certa, eles nunca ficaram com muito receio. “Só que este é um fardo pesado pra se carregar, né”, afirma Ron.
Todavia, sejamos honestos aqui, ninguém é mais tietado do que Stephen Root, que interpreta justamente Milton Waddams, o cara que não estava destinado a ser o protagonista mas roubou a cena. Ignorado pelos chefes e pelos colegas de escritório, ninguém sabe exatamente o que ele faz. Sua mesa é mudada de lugar constantemente, chegando até mesmo a ser colocada no porão, apenas para que ele saia do caminho. Estamos falando do cara que todo mundo tem aquele medinho de que apareça com uma arma no dia seguinte e mate todos os colegas de trabalho sem muita piedade: ele, o nobre guardião do GRAMPEADOR VERMELHO.
Quer saber a parte divertida da coisa? O tal grampeador da marca Swingline, que é a obsessão de Milton e ele não empresta pra ninguém, não existia mais na cor vermelha. Foi o departamento de arte do filme que o pintou, para que o objeto se destacasse mais em cena. Só que o sucesso da produção fez com que a empresa passasse a receber repetidos pedidos de consumidores e, bom, eles tiverem que ceder à vontade popular. Agora, sempre que Root pinta num evento, tem que se preparar para autografar alguns grampeadores escarlates no meio do caminho.
¯\_(ツ)_/¯
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