Série inspirada no clássico da Vertigo chega ao final equilibrando na medida boas doses de porralouquice e também emoção, trazendo alguns elementos do gibi original mas acertando brilhantemente ao desenvolver sua identidade própria
SPOILER! Eu sabia que ia me dar um gosto meio amargo na boca ter que escrever este texto — porque, afinal, em pouco menos de dois meses, tive que dar adeus para duas das minhas séries favoritas nos últimos anos. Começou com Legion e agora é a vez de Preacher. Mas da mesma forma que aconteceu com a obra de Noah Hawley, ainda que por motivos e com uma narrativa diferente, a jornada de Jesse Custer, Tulip e Cassidy chegou ao fim do jeitinho que devia ser: sem perder a loucura, mas salpicando o seu caos mal-educado com pitadas de uma emoção quase adocicada que estes três protagonistas bem que mereciam.
Talvez esta última temporada de Preacher tenha, digamos, deixado alguns fãs insatisfeitos porque acabou não sendo tão ~insana quanto poderia. Eu até entenderia o argumento, embora discorde dele: como parte de sua mais do que bem-vinda liberdade criativa, que abraçou um tanto de elementos dos gibis, ignorou outro bocado (ainda bem!), alterou bem um terceiro quinhão e ainda se viu tranquila para criar outra porção de novidades, a série fez com que esta última temporada se encerrasse de um jeito que fazia sentido para tudo que A SÉRIE construiu ao longo de quatro anos. O espírito do gibi está lá, claro, mas respeito a trama que eles criaram para si mesmos.
Para quem leu as HQs: sim, o ápice deste encerramento todo acontecesse no Alamo... mas não do jeito que rolou no último arco de Garth Ennis e Steve Dillon. Aliás, bem pelo contrário. O diálogo entre o Pastor e Deus — interpretado de maneira maravilhosamente canastrona por Mark Harelik, tornando-se o vilão que este trecho da história tanto pedia — é genial e bastante apropriado para os dias de hoje, é bom que se diga. “A gente é todo cagado enquanto humanidade mas, numa boa? Deixa a gente paz, cara”, é o recado de Custer para o Todo-Poderoso. E quando o barbudão chega no Céu, se depara com ninguém menos do que o Santo dos Assassinos, numa sequência aí sim inspirada nos gibis, mas que é absolutamente gloriosa.
Tão gloriosa quanto, aliás, quanto a luta entre Adolf Hitler (Noah Taylor, incrível do começo ao fim) e Jesus Cristo — uma porradaria mano a mano que é bastante significativa porque, além dos dois personagens simplesmente não existirem nos quadrinhos mas terem participações que deram um corpo ainda mais importante à trama toda, o humor na base do absurdo está presente ao longo de toda a sequência.
Mas ao final, quando o manipulador líder nazista e atual governante do inferno chama Jesus de “judeu” e o nazareno responde “isso mesmo”, bingo. O recado é forte pra caralho, um verdadeiro chute nos ovos. Que continua, sejamos francos, quando ele simplesmente diz NÃO para o paizão, em seu plano mirabolante para o apocalipse (que não existe nos gibis também mas é maravilhoso: que melhor jeito contemporâneo de fazer todos se tornarem parte do fim do mundo do que com um show de variedades transmitido ao vivo?).
Sobre Jesus, importante relembrar o trabalho do ator Tyson Ritter (que, trivia, também é músico: ele é o vocalista da banda pop punk The All-American Rejects!!!!), que é ao mesmo tempo o bondoso Jesus que gosta de dançar hip-hop e o adorável Humperdoo, duas performances tão diferentes entre si e ao mesmo tempo tão cheias de carisma. O Humperdoo, aliás, que era bizarro, estranho, surreal, motivo de piada inclusive pra gente do lado de cá da telinha quando apareceu e que aos poucos vai mostrando uma inocência, uma doçura infantil, transformando-o de uma forma que Ennis nunca sequer deve ter imaginado e que vai mexendo com nossas emoções, a ponto de sentirmos pena de seu destino. Aos poucos, a gente se torna como o Cassidy.
Ah, é. O Cassidy. Preciso DEMAIS falar sobre o Cassidy.
Porque, assim, se o Jesse Custer de Dominic Cooper se parecia bem com a sua versão dos quadrinhos, os produtores e roteiristas acertaram na mosca ao levar a Tulip da Ruth Negga pra um caminho bem diferente — não apenas fisicamente, até porque esta parte bem foda-se, mas na personalidade. Menos dependente, menos par romântico, menos dama em perigo e mais chutadora de bundas, com um passado único, conflitos próprios, numa deliciosa competição com a Featherstone e sem depender do Jesse ou mesmo de um Cassidy. Um ser beberrâo e sobrenatural com quem seu envolvimento amoroso, aliás, adquire contornos mais interessantes e menos tóxicos. É menos trepada e mais uma relação de coração dividido em dois.
Cassidy ainda bebe pra caralho e usa todos os tipos de drogas possíveis e imagináveis. Mas não anda o tempo todo de óculos escuros. E não é a representação física do cinismo, da selvageria, alguém que sempre deixa a sensação no ar de que não vai se poder confiar. Não. Este Cassidy aqui é uma espécie de demônio enfrentando os próprios demônios o tempo todo. Querendo afogar as suas tentativas de ser o mais próximo que dá de um ser humano com álcool. Quando ele está preso em Masada, ouvindo conselhos em forma de parábolas de um sujeito de penteado estranho, Cassidy se desconstrói ainda mais. E chega ao seu ápice como personagem, tornando-se tão importante quanto o próprio Jesse. A relação com o Humperdoo? Uau. Inesperada. Seu final? É lindo. Importante e poderoso. Me fez chorar, de verdade.
Cassidy é a melhor coisa de Preacher, a série, vamos admitir. E este Cassidy, conforme eu já disse antes mas acho que vale a pena reforçar aqui, é MUITO melhor do que a sua contraparte dos quadrinhos. Assim, de longe. Obrigado, Joseph Gilgun, por dar show e roubar a cena a ponto de me querer fazer ver um spin-off sobre o passado do vampiro irlandês... ou, quem sabe, sobre onde diabos ele foi parar entre a cena do berço e a cena da lápide (aliás, ótima sacada do roteiro, sejamos francos).
Destaque também para Herr Starr, que graças à interpretação digna de palmas do Pip Torrens, ganhou um destino diferente mas compatível com o que se esperava de um vilão tragicômico como ele, e também para o Cara de Cu. Deixa eu fazer um parênteses aqui, aliás: nos quadrinhos, quem leu bem sabe que o pobre sujeito com a cara deformada era apenas e tão somente um alívio cômico. Quando muito, um sidekick, vá.
Mas ao longo desta temporada 4, Eugene entende que por baixo daquela aparência que dá pena, por baixo da aparente bondade, serenidade e passividade absolutas, existia uma raiva do mundo que ele não sabia como conter. E quando ele se descobre na música, a sutileza da cena na qual ele troca a delicadeza pop de Closing Time, do Semisonic, pela fúria incontida de Stars and Stripes, dos punks do Circle Jerks, justamente DEPOIS do discurso FODA que faz no hospital, temos aí outro personagem cujo ciclo se fecha lindamente. Porque o Cara de Cu enfim desdobre que tá tudo bem ficar puto da vida com o mundo. Todo mundo sente raiva. E deveria poder sentir e aprender a lidar com isso, ao invés de reprimir e ser obrigado a enxergar tudo sob a lente do “paz e amor”.
Preacher pode ter começado como uma série sobre blasfêmia, heresia, absurdo. Pode ter mantido tudo isso e, na real, que muito bom. Pode ter sido, a princípio, sobre como ser mais louco a cada episódio. Mas, aos poucos, foi se tornando uma série sobre como um pequeno grupo de personagens sobrevivia a toda esta loucura e sobre como esta jornada os afetava e como nos afetou, enquanto espectadores. Porque o caos encarnado em forma de série de TV também sabia falar de amor — mas não aquele tipo de amor sem questionamentos para certas entidades de barba branca, é bom que se diga. ;)