Como a escalação da atriz para o papel da protagonista do live-action da Pequena Sereia da Disney fez surgir um monte de ~especialistas no assunto, vale a gente falar um tantinho sobre isso…
A partir do momento em que o primeiro ser mitológico com cauda de peixe surgiu na imaginação da humanidade, seres e espíritos da água foram criados. O primeiro registro surge por volta de 5000-4000 A.C. na antiga civilização babilônica com desenhos e histórias sobre o Senhor das Águas, Oannes, e sua esposa.
Mas ao longo da nossa história, diferentes povos pelos mundo retrataram essas criaturas. Os chineses acreditavam em deuses dos rios e ninfas da água, geralmente honrados e respeitados, e os povos da Escócia, Irlanda e Grã-Bretanha tinham crenças parecidas envolvendo divindades dos rios, espíritos da água e as tais sereias. Os filisteus acreditavam em Dagon, os indianos em Matsya (o primeiro avatar de Vishnu) e os gregos em Nereus e suas filhas Nereidas, às vezes representadas como metade-peixe e metade-mulher, além das sirenas, das ninfas e das donzelas do mar.
Ainda respeitada e celebrada no Ocidente, o espírito da água africano Mami Wata foi venerado nas África Ocidental, Central e Austral, Caraíbas e partes da América do Norte e América do Sul. Ela representava uma das deusas mais poderosas da religião africana de Voudun e permanece sendo amada e temida. Mami Wata é considerada um espírito imortal que personifica dois lados, como riqueza e destruição, beleza e perigo, saúde e doença, e a incapacidade de seguir idéias do bem e do mal. Assim como todas as outras divindades relacionadas às sereias, ela é perigosa, poderosa, sexual, agradável e capaz de destruir qualquer coisa.
No folclore brasileiro, nós também temos a nossa representação desse ser mistico. Com origem indígena, a lenda da Iara é bastante popular no país ao contar a história de uma mulher invejada por sua beleza e coragem. Com ciúmes, seus irmãos decidiram matá-la, mas a Iara acaba vencendo a luta e mata seus irmãos. Com medo da punição do seu pai, Iara decide fugir, mas é encontrada pelo pai que a lança no rio como forma de castigo. Os peixes resolvem salvar a jovem e a transformam em sereia. Desde então, Iara habita os rios amazônicos conquistando homens e depois os levando para o fundo do rio, onde morrem afogados. Dizem que quem consegue escapar do seus encantos fica enlouquecido, entrando em uma inércia que só pode ser curada por um pajé.
Eu não sei se deu pra perceber aqui, mas... Nunca existiu apenas uma versão das sereias ou do seu mito.
Essa concepção atual sobre sereia ser uma linda criatura do mar foi desenvolvida com o passar do tempo, a partir dos contos mais populares derivados de concepções antigas. A tal cena folclórica da bela mulher-peixe penteando os cabelos em uma rocha é uma imagem clássica contada há muitos anos e espalhada por marinheiros e moradores de cidades costeiras em contos populares. Ao longo do tempo, essas histórias foram imortalizadas por artistas e poetas, além das lendas populares, como a própria história da Iara.
Durante a era da arte romântica no século XIX, as sereias foram fontes de inspiração de muitos artistas com obras como A Mermaid, de John William Waterhouse. Outros artistas também se inspiraram nesse mito, como Edward Burne-Jones, Edvard Munch, Howard Pyle, Arthur Rackham e Arnold Brocklin. Apesar de estilos diferentes, todas eram retratadas essencialmente como jovens e bonitas.
Esse mito foi levado tão à sério que existe uma história sobre um rei do Benin, no século XIV, que ficou paralisado e alegou estar se transformando em um deus do mar. Sem esperar que o rei andasse, os súditos acreditavam que não podiam olhar para sua “cauda sagrada”.
Enquanto algumas criaturas eram retratadas como inofensivas, diversas delas desempenhavam um papel bastante perigoso no imaginário coletivo. Apesar de muitas serem chamadas de nomes diferentes e os detalhes variarem, eram descritas da mesma maneira: seres com um poder de sedução tão grande que conseguiam atrair homens para realizarem suas vontades. Com o crescimento da popularidade do cristianismo, as sereias e seus “colegas do mar” ganharam conotações negativas, sendo vistas como uma representação do pecado.
Em O Canto da Sereia: Uma Visão Medieval da Mulher — obra que me foi indicada pela fantástica pesquisadora Flávia Gasi, fundamental para orientação deste texto, junto de Melissa Jones, bacharel em História e Estudos Clássicos pela Christopher Newport University –, o autor Francisco Assis Florencio analisa como a mulher era vista na Idade Média. Essa obra aponta que as mulheres eram vistas como seres inferiores ao homem e fonte de sua ruína e desgraça, graças ao seu “poder de sedução” — é importante ter isso em mente ao analisar a forma como as sereias são retratadas ao longo da nossa história e na cultura pop.
Lançado em 1961, o livro Sea Enchantress: The Tale of the Mermaid and Her Kin, escrito por Gwen Benwell e Arthur Waugh, cita que esse ser geralmente “aparece como uma perigosa sereia contra a qual nenhum navio ou marinheiro pode ser considerado seguro no alto mar; e também como uma saudade da donzela do mar para a alma que só ela pode alcançar pelo casamento com um mortal”.
Mas, ainda sim, as sereias continuavam no imaginário coletivo com “notícias” de aparições em jornais e revistas em relatos de marinheiros. Essas “notícias” também acabaram sendo fontes de inspiração para esculturas, arquiteturas, poemas e peças de teatro criadas nesse período. Até William Shakespeare criou sua própria representação das sereias.
Uma das histórias mais famosas sobre essas criaturas é The Little Sea-Maid, obra escrita por Hans Christian Andersen em 1836. Servindo de inspiração para A Pequena Sereia da Disney, o conto acompanha a história de uma sereia que salva um príncipe de se afogar e se apaixona por ele. Diferente da animação, a versão original é macabra e mostra a protagonista dando sua língua à uma bruxa do mar em troca de pernas (que doem e não tem firmeza) e uma chance de ser humana. Quando o príncipe acaba se casando com outra pessoa e a ex-sereia é condenada a se tornar espuma do mar, suas irmãs fazem um trato com a bruxa para permitir que ela matasse o príncipe e deixasse seu sangue cobrir seus pés. Por amá-lo demais, ela decide não matá-lo e aceita seu destino.
Como acontece com qualquer artista, esse modelo criado por Andersen retrata muito bem o período em que viveu. Assim como as inúmeras pinturas e esculturas prévias, essa representação marcou uma virada significativa na visão dos contos populares sobre essas criaturas serem perigosas. Sendo seres irreais, qualquer artista pode imaginá-los como bem entender. Apesar da visão de Andersen ter se tornado tão famosa a ponto de ser usada como inspiração para muitas representações depois, essa profunda influência não significa ser esta única forma de retratá-la. Como todos os diferentes mitos de povos de diferentes épocas mostram, não existe um padrão para uma lenda. A clássica Ariel ruiva é apenas uma variação de um mito muito conhecido.
Usando como base essas visões, o século XX introduziu uma nova imagem das sereias para o público em filmes e histórias em quadrinhos. Com uma imagem mais bucólica do que assustadora, o diretor francês Georges Méliès foi responsável pela criação da primeira sereia no cinema. Lançado em 1904, o filme mudo La Sirène acompanha um mágico que tira coisas do chapéu e produz uma bela e jovem sereia que parece estar no seu habitat natural. Sem saber se a sereia é real ou apenas um truque do mágico, o filme termina com ambos se transformando em deuses do mar.
Nos anos seguintes, a atriz Annette Kellerman interpretou diversas sereias nas produções Siren of the Sea, Neptune’s Daughter, Queen of the Sea e Venus of the South Seas, entre os anos de 1911 e 1924. Em todas essas produções, a imagem sobre a bela e jovem sereia permanece. Em 1924, o popular filme mudo Peter Pan, primeira produção baseada na obra de JM Barrie, também mostra belas sereias com longos cabelos banhando-se junto à costa. Além de uma boa aparência, elas são doces e concordam em ajudar o protagonista e seus amigos. Já a versão de 1953 retrata as sereias de forma mais agressiva ao sentirem ciúmes de Wendy ao ajudarem Peter.
Nas décadas seguintes, as sereias ganharam destaque em várias formas de literatura, além da introdução em histórias em quadrinhos populares. A primeira sereia em histórias do tipo foi Lori Lemaris, em uma aparição em The Girl in Superman’s Past na edição 129 de Superman, de 1959. Descrita como uma “garota de rara beleza e coragem com olhos azuis e misteriosos como o mar”, a personagem vive na Atlântida e tem o poder de ler mentes, usar telepatia a longas distâncias, se comunica com humanos e dá comandos para criaturas marinhas. Mas, diferente de A Pequena Sereia lançado muitos anos depois, Lori não aceita se casar com Clark Kent por acreditar que um homem e uma sereia não podem viver juntos.
Mais próximo do final do século XX, filmes sobre sereias se tornaram extremamente populares. Além de A Pequena Sereia, tivemos Ron Howard dirigindo o romance fantástico Splash – Uma Sereia em Minha Vida. Estrelado por Tom Hanks e Daryl Hannah, o filme de 1984 é um marco cinematográfico na forma de retratar essas criaturas. Assim como em muitas outras histórias citadas nesse texto, a sereia e um ser humano se apaixonam e precisam lidar com essa relação.
Outra produção clássica é Mônica e a Sereia do Rio, quarto filme da Turma da Mônica (sim), dirigido por Walter Hugo Khouri e com participação de Tetê Spíndola. O filme é dividido em quatro contos e apenas o último, A Sereia do Rio, trata de uma sereia especificamente. Nele, Mônica e Cebolinha saem pra pescar (?), com o Cebolinha sendo o escroto de sempre, o que faz com que a Mônica “precise” provar que mulheres também sabem pescar.
Ela sabe pescar TANTO que acaba fisgando uma Sereia, que deixa o Cebolinha ENCANTADÍSSIMO, querendo levá-la para a TV... Sensatíssima, Mônica não concorda e acaba soltando (!) a Sereia de volta no Rio.
Dá pra assistir ao curta completinho aqui, ó:
Ao longo dos anos, diversos programas, filmes e livros populares representaram as sereias de forma positiva, provavelmente por causa da virada na sua imagem que aconteceu no século XIX e por serem histórias direcionadas à crianças e adolescentes. Não é difícil imaginar que a representação no século XXI seja influenciada por uma mistura das conotações negativas e positivas do mito. Mas é importante deixar claro que cada história, lenda ou religião apresenta sua própria versão das sereias.
Só nos últimos anos, por exemplo, Hong Kong nos deu As Travessuras de uma Sereia, dirigido por Stephen Chow (sim, o mesmo de Shaolin Soccer e Kung-Fusão) e a Polônia nos entregou A Atração, dirigido por Agnieszka Smoczynska. Ambos os filmes foram exibidos no Brasil em Festivais e, nesse momento, o primeiro filme se encontra disponível no Netflix.
Por falar nisso, o serviço de streaming também nos deu recentemente Tidelands, uma série australiana sobre, olha só, sereias. :P
Enquanto muitos seres místicos foram esquecidos com o passar dos anos, as sereias permanecem vivas na mente das pessoas, ganhando novas e fantásticas histórias. A Pequena Sereia, mesmo, ganhou uma versão em 2018. E agora vai ganhar outra. Com uma atriz negra no papel. Sabe o que isso significa? Só mais uma versão de uma história bem antiga.
Cosplays da Ariel da animação poderão ser feitos normalmente, por pessoas de qualquer cor de pele, inclusive as brancas. Mas sabe o que é ainda mais legal? Novos cosplays poderão ser feitos. Porque novas pessoas se enxergarão naquele papel que, tal qual um Homem-Aranha da vida, não tem nada relacionado à sua cor de pele.
Aí, sabe quem ganha nessa história? Todos nós. :)