Sam Wilson, o Capitão Anti-América? | JUDAO.com.br

O novo Bandeiroso das HQs resolveu assumir uma postura: ele não vai mais baixar a cabeça em relação a tudo que ele acha errado, e isso inclui racismo e a questão da imigração ilegal. Já tem gente lá nos EUA (incluindo a Fox News, claro) soltando fumaça pelos ouvidos…

[spoiler] Você pode acusar a Marvel Comics de ser várias coisas, mas não de ser omissa. Eles erram, claro – o caso da capa da Mulher-Aranha pelo Milo Manara é o exemplo mais claro –, mas também estão tentando fazer a diferença. Na última New York Comic Con, por exemplo, anunciaram que estavam chegando a boa marca de 17 revistas mensais estreladas por mulheres. Temos também a nova versão do time principal dos Vingadores, que só tem um homem branco caucasiano.

Nessa coisa de “fazer a diferença”, a tacada mais recente é o Capitão América. Na última semana, a editora iniciou uma nova fase do personagem, publicando Captain America: Sam Wilson #1. Sim, o ex-Falcão continua como o Bandeiroso depois que Steve Rogers perdeu o Soro do Super-Soldado e não pode mais defender as cores da América como antes. O novo Capitão então se aliou à SHIELD pra tirar os infiltrados da HIDRA lá de dentro, num plot que lembra a segunda temporada de Agents of SHIELD.

Bom, você não precisa ter lido o volume anterior, que se passa antes de Secret Wars, pra entender o que tá rolando agora. O que você precisa saber, mesmo, é que o relacionamento entre Sam e a SHIELD não foi lá muito bom. Deu tudo errado e o herói entrou num acordo com a Maria Hill, que atualmente manda na bagaça: “acabando com a HIDRA, eu sigo o meu caminho, você segue o seu”. E eles acabaram.

Essa primeira edição chega num momento que Sam Wilson está tentando entender onde o Capitão América dele cabe no mundo. Ele não é mais colaborador da SHIELD ou do governo e passou aquela ~alegria de ser simplesmente o Bandeiroso. Num primeiro momento, bastava estar presente numa comemoração ao casamento igualitário. Mas é só isso?

Captain-America-Sam-Wilson-Issue-1-Cover“Vamos ser honestos aqui. Este país tão dividido como jamais esteve. Vermelho e azul. Preto e branco. Republicano e Democrata. Parece que estamos constantemente nas gargantas de um dos outros, que não confiamos uns nos outros. Nós não mais nos vemos em nossas vizinhanças”, diz o próprio Sam Wilson na história. “E isso não é só um debate intelectual – as pessoas estão morrendo. Nossas ruas estão pegando fogo. A desigualdade está subindo. Parece que as coisas estão prestes a explodir”.

A crítica aos Estados Unidos é visceral. Direta, crua. Realista. E poderia servir ao Brasil.“Os caras bons – SHIELD e a NSA – estão sendo pegos fazendo coisas que nunca sonhamos que os caras malvados fariam. Mesmo nos nossos piores pesadelos”, continua o herói. Qualquer semelhança...

O enredo do Capitão América contra a América não é novidade. Steve Rogers, uma cria da época da luta contra o Nazismo e a Segunda Guerra Mundial, já viu os Estados Unidos fazendo coisas que condenava, chegando a abandonar o manto azul-vermelho-branco e adotando os nomes de Nômade e Capitão. Ou ainda durante a Guerra Civil, quando Steve se opôs à SHIELD e a Lei de Registro dos Super-Humanos, se rebelando e liderando a resistência contra a nova legislação.

Só que Steve Rogers sempre lutou pela liberdade de forma mais abrangente, quase que como uma personificação dela. A questão não é mais a corrupção do governo, ou uma lei que vai contra a liberdade do povo como um todo. O que Sam Wilson vê é uma divisão de ideias que está fazendo negros sofrerem com racismo e não terem as mesmas oportunidades que os brancos, ou imigrantes latinos sendo caçados no deserto como se fossem animais (ou pior que isso), pessoas sem acesso a uma saúde decente, pessoas mortas pela polícia sem a chance de se defender...

“O Capitão América não deveria ser mais que um símbolo?”

“O Capitão América não deveria ser mais que um símbolo? Steve sempre tentoU ficar acima da discussão. E eu o respeito por isso. Ele assumiu uma posição quando teve que fazê-lo. Mas, enquanto à política, ele se esquivava”, continua Wilson. “Mas se eu realmente acredito que posso fazer a diferença – se eu realmente eu posso mudar algumas mentes, fazer algo bom – então eu não sou obrigado a tentar?”.

E aí o novo Capitão América vai lá, convoca uma coletiva de imprensa pra falar que ele não representa apenas uns socos em quem “faz mal à América” no exterior, ou a defesa do país contra a HIDRA e instituições assim. Ele está aí pras pessoas. Pro pardo, pro branco, pro negro, pro asiático, pro latino... Pra ajudar as pessoas em seus bairros, no problema que acontece na esquina. E que todo mundo pode pedir ajuda mandando um tweet, um vídeo, um post no Facebook, um ZAPZAP...

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Deu merda, claro. Primeiro porque, sim, a mensagem foi entendida errada por metade da população, aquela outra metade que não concorda com ele, simplesmente porque ele assumiu um lado. “Capitão versus a Constituição?”, cravou um jornal. “Sam Wilson: Capitão Anti-América”, destacou outro.

Em segundo lugar porque, bom, vocês conhecem internet. O herói recebeu vários vídeos – todos de brancos, aparentemente de classe média – reclamando das coisas mais triviais da vida. “Eles não podem cancelar a série assim. E o cliffhanger?”, ele chegou a receber. Pois é.

Mas, entre as mensagens, vem uma de uma avó. Uma latina, imigrante do México, preocupada com o neto. Alguém com bom coração, chamado Joaquin, que tenta trazer pessoas pobres de sua terra pra tentar uma oportunidade melhor na América. “Algumas pessoas dizem que ele é um Coiote. Mas ele não é. É um samaritano”.

E Sam Wilson foi lá. Mesmo sem dinheiro, viajando em voo comercial, no banco do meio, ele foi lá. Acabou se encontrando com uma nova encarnação dos Filhos da Serpente, que são “super-patriotas” que sempre se opuseram a qualquer minoria étnica ou religiosa, só que agora estão bem mais violentos e atuantes.

Aí você pode pensar que, bom, ok, é só ir lá, dar um soco nos vilões e tá tudo certo, né? Nem tanto. Aqueles que ele está defendendo também são imigrantes ilegais. A SHIELD aparece – junto com Steve Rogers. Sam Wilson é preso.

Captain America: Sam WIlson

Por isso tudo, essa edição é incrível. Talvez seja a mais importante da Marvel nessa nova fase. O roteiro de Nick Spencer é ótimo, bem pensado, bem ligado ao atual momento dos EUA e do mundo, que faz valer a presença de Sam Wison como Capitão América – e, curiosamente, Sam Wilson é justamente o nome do homem que inspirou o Tio Sam. O roteirista usa até a passagem do herói pela checagem do TSA – aqueles horríveis scanners corporais e esteiras pra deixar a bagagem de mão e objetos pessoas – pra brincar com os momentos que o novo Capitão América duvida do próprio país que defende as cores.

A arte de Daniel Acuña está também ótima, numa clara evolução desde os tempos de Flash, Hulk e X-Men.

Alguém pode dizer que esse Capitão América é “de esquerda” ou chamá-lo de Captain Socialism (o que efetivamente um dos Filhos da Serpente faz na parte final da história), mas não é isso. Trata-se de alguém que sofreu na pele o preconceito, o racismo. Alguém que não pode fechar os olhos para os outros que estão sofrendo o que ele sofreu.

Claro que os americanos, principalmente do lado conservador, estão surtando. O maior exemplo é o da Fox News, que, no programa Fox News & Friends, usou seus apresentadores pra soltarem umas besteiras sobre essa nova fase do Capitão América. Parece que eles pararam de ler o personagem em Captain America Comics #1, publicado ainda no começo da Segunda Guerra Mundial, e não perceberam que o personagem (e o mundo) evoluíram.

É curioso ver exatamente aquilo que está na HQ acontecendo na ~vida real. Demonstra bastante como a Casa das Ideias foi certeira. E não, não se trata de uma luta “contra os conservadores”. É uma luta por aquilo que cada um acha certo – e que os direitos de um não sobrepujam (ou superem) os direitos dos outros.

Que venha mais uma épica fase do Capitão América.