Num momento em que se discute justamente a liberdade criativa que os executivos da Disney permitirão daqui pra frente, a Marvel Studios vai buscar uma personagem que traz um potencial imenso
Depois de todos os anúncios que permearam a sua participação na San Diego Comic-Con, tinha gente que apostava que a Marvel Studios chegaria meio “esvaziada” na D23 Expo, o evento particular dedicado a tudo que é 100% Disney — o que, vale lembrar, agora inclui Os Simpsons. Ledo engano, pura inocência. Mas era ÓBVIO que eles tinham guardado alguma coisa pra anunciar jogando em casa, né?
Pois bem, já se sabe oficialmente que teremos Pantera Negra II, com estreia cravada para dia 6 de Maio de 2022 e, ainda bem, com a volta de Ryan Coogler. Também conhecemos novos nomes do elenco do filme dos Eternos — Gemma Chan, que foi azul no filme da Capitã Marvel, vai ser Sersi; Barry Keoghan (Chernobyl) viverá o Druig; e Kit Harington, ele mesmo, o Jon Snow, será Dane Whitman, ninguém menos do que o Cavaleiro Negro, personagem que vinha sendo ventilado nos bastidores como favorito de Kevin Feige há um tempão.
Só que as grandes surpresas DE FATO se dariam mesmo no campo das séries – no caso, aquelas do Disney+ e produzidas pela Marvel Studios, totalmente parte integrante do tal Universo Cinematográfico da Marvel. Já se sabe que a Darcy (Kat Dennings) vai reaparecer em Wandavision, junto do agente secreto Jimmy Wood (Randall Park), que apareceu no segundo Homem-Formiga. Enquanto isso, na série do Falcão com o Soldado Invernal, Wyatt Russell será ninguém menos do que John Walker, o Agente Americano, aquele que o governo dos EUA quis a todo custo enfiar como substituto do Capitão América (sacou?).
Sim, a boataria estava certa e teremos uma série da Miss Marvel, Kamala Khan, a adolescente muçulmana superpoderosa que é uma das mais carismáticas e divertidas personagens a surgirem na editora em muitos anos e que a gente já tinha defendido muito tempo atrás que merecia seu lugar ao sol fora dos gibis. Da mesma forma, teremos uma série do Cavaleiro da Lua, outro que vinha sendo mencionado na lista de potenciais apostas há pelo menos um ano, o Batman da Marvel, só que às voltas com um sério problema de personalidades múltiplas.
E, bom, aí que pintou uma inesperada TERCEIRA nova série, igualmente sem data prevista de lançamento e/ou qualquer confirmação de elenco, mas que explodiu a cabeça de quem tava acostumado a ler gibis de heróis na década de 1990: She-Hulk, popularmente conhecida por aqui como a Mulher-Hulk.
A advogada Jennifer Walters acabou se metendo com as pessoas erradas (ou, no caso, com as pessoas certas, já que ela estava fazendo o seu trabalho de encarar a bandidagem, mas enfim) e foi baleada por uma gangue de mafiosos justamente no dia em que era visitada por seu primo, um tal de Bruce Banner, vindo lá de Nova York para Los Angeles só pra isso. A moça perdeu muito sangue, ninguém conseguia encontrar alguém compatível, e eis que Bruce resolveu ser doador pra transfusão.
Dá pra imaginar o que aconteceu? Pois então, o sangue irradiado do sujeito transferiu parte da radiação gama pro corpo da Jennifer, que ganhou habilidades similares às dele. Ficou grande, forte, resistente e, claro, VERDE. Mas, diferente do primão, Jen mantinha a consciência quando se tornava a Mulher-Hulk, não tinha a coisa toda de duas personalidades, Médico e o Monstro. Durante muito tempo, aliás, ela chegou a ficar presa no corpo de sua versão Hulk, vivendo a vida normalmente – ou, pelo menos, o mais perto do normal que é possível viver a) sendo verde e b) nesta comunidade maluca de supers. No fim, se tornou uma integrante respeitada tanto dos Vingadores quanto do Quarteto Fantástico, no qual teve uma longa fase substituindo o Coisa enquanto ele escolheu ficar pra trás no mundo das Guerras Secretas originais.
Última personagem criada para a Marvel por Stan Lee antes do cara abandonar os roteiros e se focar na vida como relações públicas e face cinematográfica da Casa das Ideias, a Mulher-Hulk surgiu em 1980, nas páginas de seu título próprio, The Savage She-Hulk. O motivo de sua criação é insólito: a série do Hulk, na TV, tava fazendo o maior sucesso. Mas uma das séries que se igualavam em popularidade era a da Mulher-Biônica, que nada mais era do que uma versão feminina do Homem de Seis Milhões de Dólares. A Marvel ficou com medo que a emissora resolvesse, então, experimentar uma versão feminina do Hulk e acabou criando a personagem antes, pra garantir os direitos autorais e igualmente ser referência caso eles quisessem fazer a Mulher-Hulk na telinha. Mas a série e/ou filme pra TV nunca saíram do papel, tanto quanto um planejado filme pra cinema com a Brigitte Nielsen (que depois foi a Red Sonja) no papel principal.
A grande graça da Mulher-Hulk não é apenas ela ser uma heroína, que chuta bundas, que encara qualquer vilão de frente na base da porrada, que é inteligente, autoconfiante, independente, de vida sexual/afetiva bastante ativa (já teve envolvimentos com Starfox, Luke Cage, Hercules e até com John Jameson, filho do JJ) e inclusive meio marrenta. Isso é legal, mas não é só isso. O negócio é que ela é uma personagem COM GRAÇA. Aventura com humor que, lá em 1989 e ao longo de grande parte dos anos 1990 — bem antes de Deadpool se tornar famoso por isso — vivia quebrando a tal da quarta parede, cortesia de John Byrne em The Sensational She-Hulk.
Enquanto os fãs mais hardcore se dividiam entre os populares e badalados X-Men e o pisoteado Homem-Aranha e seus roteiros sofríveis, Jennifer Walters tinha total e plena consciência de que era uma personagem de gibi. Byrne brincava com o mercado de quadrinhos, fazendo a garota efetivamente mencionar não apenas ele mesmo enquanto autor (em boa parte dos casos, bem fula da vida, quase saindo do quadro ou rasgando a página pra reclamar pessoalmente com o roteirista/desenhista), mas também editores, letristas, coloristas, arte-finalistas e, óbvio, por que não?, dos leitores.
Byrne chegou até a aparecer nas páginas da HQ como ele mesmo, o escritor da trama, só pra ser jogado pela janela por sua protagonista. Afinal, só ele mesmo pra resolver colocar na sua frente um tal Doctor Bong, um vilão com cabeça de SINO. “Isso é algum tipo de piada?”, diz ela, se virando pro leitor, no quinto número deThe Sensational She-Hulk. “O Quarteto Fantástico e o Homem-Aranha enfrentam o Doutor Destino nas edições 5 de seus gibis e eu recebo este palhaço?”.
“Quando Mark Gruenwald estava falando comigo sobre fazer um novo gibi da Mulher-Hulk, ele me pediu para pensar num jeito de fazer algo diferente”, relembra Byrne, em entrevista ao Syfy Wire. “Eu peguei o metrô de volta pra casa e, no caminho, pensei: ela sabe que está num gibi”. E foi simplesmente assim, inspirado meio pelos Looney Tunes e meio pela série de TV A Gata e o Rato, com Bruce Willis, que Byrne teve a ideia de fazer este experimento, surgido muito antes de Rob Liefeld sequer sonhar em criar o Mercenário Falastrão. “Eu tenho um senso de humor meio maluco que não uso frequentemente no meu trabalho. Mas a Mulher-Hulk me permitiu fazer isso”, completa Byrne.
Dá pra imaginar ela sabendo perfeitamente que está vivendo numa série, falando com o espectador e inclusive sacaneando os clichês do próprio MCU, combatendo o crime mas principalmente cuidando juridicamente de casos relacionados com um bando de heróis e vilões do segundo escalão da Marvel. E é sobre ESTE TIPO de coisa que a gente tava falando quando disse que estes novos anúncios do MCU pareciam interessantes, porque abrem as portas para possibilidades e narrativas diferentes. É exatamente ISSO que a gente quer ver acontecer: menos combates épicos e mais liberdade criativa.
Vai, Pateta, você consegue. ;)