Ao lado de um timaço de convidados especiais, Emicida faz o sol raiar e cria uma narrativa cheia de esperança até o pôr do sol — mas nas entrelinhas, jamais deixa o olhar afiado e o discurso crítico de lado
No comecinho de Cananéia, Iguape e Ilha Comprida, uma delícia de faixa ensolarada na primeira metade de AmarElo, o novo disco do Emicida, o rapper faz uma brincadeira com a filhota Teresa, que está balançando o chocalho. “Tem que tocar com vontade. Mas sem risadinha, porque aqui é rap, onde o povo é bravo”. A menina se escangalha de rir, daquele jeito que os bebês fazem e nos desmontam sem demora. “O povo é mau!”. Mais risadas. “Será que o Brown passa por isso? Ou o Djonga?”. As risadas da garota vão ao máximo. E aí começa uma canção sobre lembranças, sobre cores, sobre aquelas pequenas sensações da infância que cheiros e sabores trazem.
Uma faixa quase praiana, numa pegada quase reggae, com o cantor entoando seus versos com suavidade, em certos momentos quase sussurrado. É Emicida fazendo um rap que, não, não tem cara de mau. Pelo menos a princípio. Na real, o terceiro disco solo do paulistano Leandro Roque de Oliveira, 34 anos, talvez seja a sua obra mais completa e complexa, cheia de camadas, de sutilezas, de influências, que flerta ainda mais com o samba, com a MPB, que escancara as portas para incríveis participações especiais.
Este é um Emicida menos duro, áspero. Que não deixa, é bom que fique claro, de criticar, de apontar o dedo. Mas o faz com um discurso mais iluminado, otimista, com o foco na esperança — a gente tá numa lama tremenda? Ah, mas isso não tenho dúvida alguma. Mas ser feliz, de cabeça erguida, fazer arte, curtir a família, os amigos, entender o orgulho da cor da sua pele, são resistência PRA CARALHO. Continuar amando mesmo em tempos espinhosos é a nossa arma suprema, sagrada, que ninguém nos tira mesmo que atire.
Ao longo da audição, aliás, senti que AmarElo é quase como um disco conceitual, ainda que não intencionalmente. É praticamente um dia na vida deste Emicida.
Com o cheiro doce da arruda, Principia é o nascer do sol. É o Emicida acordando com o batuque do candomblé, lavando a cara e cuspindo bom humor antes do café da manhã, exaltando a luta cotidiana do homem comum, pé no chão, que renasce pra lutar todos os dias e também a sua própria, com muito orgulho, sem modéstia, sem vergonha. “No tempo onde a única que corre livre aqui são as suas lágrimas”, ele faz questão de ressaltar. Este é um bom dia.
Ao lado de MC Tha, ele senta na varanda pra apreciar A Ordem Natural das Coisas, olhar pro dia nascendo na cidade, pra correria de quem acorda cedo pra pegar o busão, pra Dona Maria que sai cedo, ainda escuro, pra garantir o leite dos meninos, da molecada que ele foi um dia. É quase como uma homenagem à sua própria mãe, personagem frequente de suas canções. Da família do ainda menino, ele convoca um violão maroto e um monte de palminhas que dão vontade de cantar junto pra falar sobre a sua própria família, a mulher que ama e os filhos que tá criando e vendo crescer, em Pequenas Alegrias da Vida Adulta.
O dia segue adiante quando Emicida encontra Zeca Pagodinho pra uma feijoada com um sambinha doce no boteco, almoço de responsa, outra declaração de amor do rapper, desta vez aos grandes amigos que estão ou que passaram pela sua vida. Talvez um dos melhores momentos do disco, Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo) diz que “Ser mano igual Gil e Caetano nesse mundo louco é pra poucos, tanto sufoco insano encontrei”, pra depois completar: “É um ombro pra chorar depois do fim do mundo”.
O dia cheio de lembranças e contemplações vai passando, o tom das canções vai ficando nitidamente mais, não sei, talvez soturno? Na parceria com Drik Barbosa, 9nha é uma daquelas lembranças sobre a adolescência que pintam do nada, sem que a gente menos espere, sobre uma parceira nessas ruas sombrias. “Num mundo de dar medo ela me dava coragem, morô?”, ele relembra, numa história que não parece que teve necessariamente um final feliz. A noite cai e aí o papo vai ficando mais sério. “Aqui é rap, onde o povo é bravo”, lembra? Nem tanto. Mas nas últimas quatro canções do disco, temos um Emicida mais puto da vida. Puto, mas sem perder a esperança, vamos lá.
A poderosa Ismália, o outro grande momento do disco, compartilha o título com uma obra do poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, com direito a trecho declamado por Fernanda Montenegro — e funciona quase como um sarau na sala de casa, amigos íntimos reunidos discutindo racismo, o quanto o mundo tá disposto a esmagar o negro que ousa ter sucesso, que ousa desejar ser feliz. “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo / Quem disparou usava farda (Mais uma vez)”, diz ele, relembrando um caso recente de uma república infelizmente tão recente quanto. “Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei”, é o que diz Ícaro no espelho. “O abutre quer te ver de algema pra dizer: ó, num falei?!”.
Isso é Emicida anoitecendo, analisando como a vida é foda. Mas em Eminência Parda, ele enxuga a lágrima e deixa a tristeza de lado. “Não tem dor que perdurará / Nem o teu ódio perturbará / A missão é recuperar / Cooperar e empoderar”, diz o rapper, quase como num grito de guerra. E avisa: “Não cansa a garganta com antas, não adianta não / Foco e atenção na nossa ascensão”. E então, na faixa que dá título ao álbum, aquela com Majur e Pabllo Vittar, ele ecoa sem parar o refrão que virou cartaz, adesivo, camiseta: “ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”. E como quem sonha mais alto que drones, eles mandam os opressores para a casa do caralho, tomando a palavra, “permita que eu fale, não as minhas cicatrizes”.
Tá de noite, galera no churrasco, brinde erguido para celebrar a força de quem é pisoteado e não aceita, se ergue e luta pelos direitos dia a dia, hora a hora. Ergam os copos porque é hora de batucar e chacoalhar para celebrar a liberdade, com um puta combo delícia de batida tribal, latinidade e eletrônico, em Libre, parceria com as gêmeas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz no duo Ibeyi.
Bom dia. Boa tarde. E para quem entrou no clima de AmarElo, muito boa noite. Porque a luz de quem ousa iluminar estes nossos dias cinzentos sempre vai ser difícil de apagar.