Baixista, este cozinheiro incompreendido do rock | JUDAO.com.br

Talvez um dos integrantes mais importantes do combo que forma uma banda, este exemplar de músico também acaba frequentemente sendo um dos mais subestimados

Tenho uma amiga querida que é vocalista de uma banda independente de São Paulo. Certa vez, ela foi convidada para fazer uma participação cantando no disco de um grupo bombadinho de pop rock, que todo mundo amava. Aí, lá foi ela cantar a sua parte no show dos caras e acabou ficando mais pro fundão do palco, fazendo backing vocal ao longo da apresentação inteira e tudo mais. Eis que em certo momento, o baixista, todo zé graça, cola do lado dela. “Quer ver como ninguém se importa com o baixista?”, soltou o cara. E aí parou de tocar, assim, do mais profundo nada, durante uns 30 segundos, pra depois voltar. “Viu como ninguém reparou?”. Nem o público e nem a própria banda, defendeu ele, ainda que em tom de tiração de sarro.

A história é divertida, claro, mas ajuda a retratar uma situação que é bastante comum em bandas de rock: o tanto que o diacho do baixista acaba sendo subestimado. Claro, você pode aí lembrar de caras como o Geddy Lee (Rush), o Les Claypool (Primus) ou o Lemmy (Motörhead), líderes de seus respectivos trios. Mas além de baixistas, eles também são vocalistas, a grande estrela do show, tal qual o linguarudo Gene Simmons no Kiss ou mesmo Roger Waters, ex-Pink Floyd.

Casos como o de Steve Harris, baixista e poderoso chefão do Iron Maiden, do virtuoso Jaco Pastorius ou então do finado refinado Mark Sandman, de um Morphine que simplesmente não tinha a caceta da guitarra na formação, são raros. No fim, os holofotes acabam ficando na eterna disputa por atenção entre o guitar hero e o frontman, enquanto pouca gente sabe mesmo para o que serve de verdade o baixista.

Que o digam, por exemplo, os caras do Metallica, que simplesmente APAGARAM o som do baixo de Jason Newsted da mixagem final do álbum ...And Justice For All (1988), assim, sem culpa nenhuma. Mas neste caso, os caras sabiam muito bem o que tavam fazendo. “Quem é músico sabe da importância do baixo dentro da banda”, aposta Bernardo Silvino, baixista (claro!) da banda mineira Lobos de Calla. “Agora, para o público em geral (e para a minha mãe), o baixo ainda é um instrumento que as pessoas não entendem muito a função e nem o som dele. É legal que, quando eu tenho a oportunidade de mostrar para alguém o som do baixo sozinho, noto um encantamento”.

Bernardo conta que sua primeira incursão musical, ainda moleque, foi com o teclado. “Mas eu era péssimo, só tocava Carruagens de Fogo e Perhaps Love”. Aí num papo dentro de sala, um amigo começou a falar sobre o baixo e como ele achava foda. “Demorei a entender do que ele estava falando e quando cheguei em casa coloquei um CD do Queen com Under Pressure e veio aquele insight: ‘AHÁ! Isso é o baixo! Eita!’. É clichê falar que foi amor à primeira vista?”. Nem um pouco, cara, ainda mais quando tamos falando de um cara como o John Deacon, né? “Ele tem linhas belíssimas e acho que é até um baixista pouco celebrado. Tem cara que a gente tem ouvir mesmo pra entender a história e a evolução do instrumento”.

No fim, parece que a ciência está do lado do Bernardo e não do nosso amigo de baixa autoestima do começo do texto. Por exemplo, pesquisadores da McMaster University, em Hamilton, no Canadá, conduziram em 2014 um estudo que comprova que nosso cérebro percebe a harmonia de uma música por meio das notas mais graves – o que significa, na prática, que se o baixista sair do tom, mais pessoas vão perceber e o trabalho estará arruinado, além do instrumento ser essencial para construir o ritmo.

Para completar o pensamento, saiu este ano um outro estudo, este da PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America), que chega basicamente à mesma conclusão ao comparar a compreensão da estrutura musical expondo os ouvidos de suas cobaias às canções com tons mais baixos em evidência contra aquelas que têm o destaque dos instrumentos mais agudos tipo guitarra e bateria. Como diz a própria pesquisa, “o baixo como protagonista faz com que as pessoas dancem mais e batam mais os pés”.

Segundo Rafael Vitor, baixista do quarteto paulistano de hard n’ heavy King of Bones, toda canção precisa manter um equilíbrio rítmico e melódico para dar mais pulso e coesão durante a sua execução. “O baixo tem uma enorme importância para que haja o preenchimento na música, um chão, um sustento que faz toda a diferença para os músicos, principalmente para a bateria, com a qual o grave contribui de forma rítmica e até mesmo percussiva”, explica. “Na maioria dos gêneros musicais, é impossível manter uma banda coesa sem os timbres graves”.

Estudante autodidata de violão e guitarra, aos 17 anos Rafael tinha uma banda com um amigo de infância na qual ambos eram guitarristas. Certo dia, rolou um convite para tocar baixo temporariamente em uma banda paralela. “Acabei aceitando. O que era pra ser temporário se estende até hoje e não pretendo trocar tão cedo. Foi paixão ao primeiro grave tocado”.

Ele conta ainda que, em gêneros como o rock/metal, o baixo tem a função de ficar como um instrumento mais “secundário” na maior parte do tempo durante a execução de uma música, pois a guitarra é o instrumento predominante para a criação de um riff, melodia, progressões harmônicas, etc. “Se pegarmos outros gêneros como funk, jazz, reggae, o baixo aparece muito mais justamente por ser o responsável por manter a estrutura, o tema principal, o ritmo bem marcado... Independente do gênero musical, a importância do baixo é incontestável e a função dele é servir exclusivamente ao sentimento que a música pede”. Mas isso não é algo que mexa com o ego dele, por exemplo, que não tem esta necessidade toda de protagonismo. “Eu gosto muito de técnica, mas prefiro mais servir a música do que ousar correndo o risco de ser desnecessário”.

O Flea concorda. ;)

Bernardo não só concorda como entende que é natural que em gêneros com mais groove, como o soul e o funk, a gente “escute” mais fácil a vibração do baixo do que num CONJUNTO roqueiro. “Esses estilos têm linhas de baixo maravilhosas e com muito suingue. E isso é o maior e mais difícil desafio de qualquer músico: tocar o que a música pede. E porque o estilo pede esse baixo com suingue, com uma equalização característica e mais na cara mesmo, é mais fácil sim de senti-lo do que numa banda de rock”, diz. E completa: “É um baixo que vai te fazer chacoalhar o esqueleto!”.

Por sinal, o músico experimentou um pouco desta ‘malícia’ do baixo cheio de groove em Quase Nada, uma das músicas do disco do Lobos de Calla que tem uma pegada bem Motown. “Foi muito legal receber os cumprimentos para a linha de baixo dela. Ao vivo, você vê que o pessoal costuma arriscar um passinho nessa hora”.

Na maioria dos gêneros musicais, é impossível manter uma banda coesa sem os timbres graves

Mas já que o assunto é passinho, gente, falaí, e essa história de que o baixista é o elemento mais “apagado” de uma banda, mais reservado na performance de palco? “Até lembrei da comunidade Baixistas Quietões e Sinistros do Orkut”, brinca Bernardo, dizendo que esta história tá mais pra lenda urbana do que qualquer outra coisa. “Existem casos de bandas com baixistas fora da curva, que obtém um destaque tão relevante quanto ao de um frontman, baterista ou guitarrista”, arrisca o Rafael, lembrando imediatamente do Flea, dos Red Hot Chili Peppers, que é de fato um show à parte. “Não dá pra negar que o Flea é um cara que influenciou muita gente”, concorda Bernardo. “Ele chama a atenção pela performance e porque agrega muito pra banda”.

Por outro lado, o baixista admite que, “com aquelas caixas atrás da gente empurrando o som grave, muitas vezes entramos em transe e ficamos ali no nosso microcosmo só curtindo o groove”. E faz uma confissão/mea culpa. “Não sei porque baixista tem uma mania de fazer uma dancinha só com o pescoço. Meio ganso”, diverte-se.

O brilhante Billy Sheehan, baixista do Mr.Big, fez questão de relembrar também em certa ocasião, numa entrevista para a Ultimate Guitar, que o baixista fica lá pra trás escondido justamente porque a dobradinha do baixo com a bateria é fundamental em uma banda de rock e, não por acaso, acaba sendo carinhosamente apelidada de ‘cozinha’ por quem entende do riscado. “O baterista é o músico mais importante de um grupo”, elogia. “E, para o baixista, o baterista é o músico no qual você mais presta atenção. No processo de tocar este instrumento, a conexão entre baixista e baterista é um dos aspectos mais importantes”.

Falando em Sheehan, além dos nomes mencionados ao longo desta matéria (incluindo aí na lista caras como Paul McCartney, daquela banda lá; John Paul Jones, do Led Zeppelin; e Geezer Butler, do Black Sabbath, entre outros), Bernardo diz que é importante relembrar uma figura que o nicho dos baixista conhecem muito, mas que tem pouca visibilidade fora do mundinho dos músicos: Carol Kaye.

“Ela é norte-americana e participou de mais de 10.000 gravações desde os anos 50”, conta. Tamos falando da mulher que tocou no icônico Pet Sounds, dos Beach Boys, por exemplo, além de contribuir para hits de artistas como Simon & Garfunkel, Ike & Tina Turner, Ray Charles, The Monkees, Joe Cocker... Até a icônica música-tema de Missão: Impossível foi ela quem gravou, gente! <3

“É muita gente boa que eu tento ouvir diariamente”, diz ele, com ecos do Rafael. E eis que ele ainda tem duas dicas de baixistas foderosos, aqui do Brasil, pra você ouvir.

Mas não, não, ele não vai falar de Felipe Andreoli (Angra) ou Andria Busic (ex-Dr.Sin), como era de esperar em um papo de músico. “O PJ do Jota Quest, além de ser um grande músico, é um cara que tá ali pra fazer você sentir o baixo. O Bi Ribeiro do Paralamas também vai fazer o chão que você pisa tremer”. E fecha: “o grande público vai se lembrar deles depois de sair de um show”.

E enquanto isso, aquele nosso baixista da abertura do texto... ¯\_(ツ)_/¯