Editora abre um pouco das próprias estratégias, mostrando que os bons números do mercado de HQs não são uma coincidência ou apenas reflexo dos filmes
A necessidade de atrair novos leitores é uma questão que já dura mais de uma década no mercado de HQs dos EUA. Lá pelo fim dos anos 2010, parecia que os gibis estavam saturados, vivendo de um público a partir de 25, 30 anos, que ainda se sentia preso a uma cronologia com décadas de existência. Era necessário atrair mais gente, ou DC e Marvel se tornariam capitães afundando dentro de seus próprios barcos, sem outra viva alma para acompanhá-las.
Tirando iniciativas pontuais, o primeiro grande projeto para atrair um público mais jovem e diferente foi o reboot da DC Comics, em 2011. No ano seguinte, a editora encomendou uma pesquisa para a Nielsen, procurando entender qual foi o impacto da iniciativa, chamada editorialmente de Os Novos 52, no perfil dos leitores. Foi, ainda, fraco. Entre os entrevistados, 93% dos leitores eram homens e apenas 2% tinham menos de 18 anos.
Só que aí, em 2016, parece que tudo isso está finalmente dando resultado. Faltam, claro, outras pesquisas como essa da DC, mas o vice-presidente para Impresso, Vendas & Marketing da Marvel, David Gabriel, abriu alguns detalhes importantes da Casa das Ideias em entrevista para o ICv2.
“A partir de coisas que pegamos de algumas análises que a Disney faz de quem compra a Marvel como marca, por conversar com donos de comic shops e ao olhar para os nossos títulos, provavelmente pelo menos 40% dos nossos leitores é mulher, o que há oito anos deveria ser por volta de 10%. E, há 15 anos, todas elas deviam estar lendo mangás”, disse o executivo, em uma informação que completa a pesquisa feita pela Distinta Concorrência há alguns anos. “Então realmente houve uma mudança, o que é ótimo, e pode ser ainda maior que 40%. Eu tenho certeza de que se você for em algumas comic shops em partes diferentes dos EUA, vão ter 50-60% de mulheres, enquanto em outras será menos. Mas é algo que estamos vendo agora. Também temos algumas estatísticas do digital, eles são um pouco melhores para identificar quem é o leitor”.
Obviamente, esse resultado acontece após uma verdadeira MÍRIADE de mudanças no mercado. Como o próprio David Gabriel destaca, os produtos da Casa das Ideias passaram a estar presentes em pontos de venda da Disney, ou mesmo em lojas como a Hot Topic. Números 1 especiais também foram vendidos nesses pontos de venda, atraindo novos leitores para as edições encadernadas ou para as revistas mensais vendidas no chamado mercado direto, o das comic shops. Isso tudo sem falar no sucesso dos filmes, das séries, das animações, o aumento dos espaços para graphic novels em grandes livrarias...
Mas não é SÓ isso. Se fosse só uma questão de aumentar pontos de venda, o número de leitores cresceria dentro do mesmo perfil demográfico. Aconteceu também uma mudança no conteúdo em si, acompanhando esse processo. Inclusive, a Marvel passou a ser criticada por sua mudança agressiva em busca da diversidade – e os críticos mais ferrenhos passaram a pregar que a Casa das Ideias estaria afastando os leitores mais tradicionais. “A primeira coisa que fazemos é olhar para as vendas. Se você olhar na internet ou nos fóruns, está fazendo a coisa errada.”, explica Gabriel, contando como eles analisam se uma estratégia deu certo ou não. “Quando as vendas mudam, é quando as coisas mudam. Um grande exemplo é o Homem-Aranha Superior, há alguns anos. Dan Slott apresentou a história como uma série em seis edições como ‘Dock Ock pega o Homem-Aranha, o vilão como herói’. E aí nós sentamos e falamos que, se vender bem, será mais do que seis edições. Nós olhamos as vendas, e tivemos 18 meses de uma das mais bem-sucedidas fases do Homem-Aranha nos últimos 15 anos”.
Homem-Aranha Superior foi, em vendas, a melhor fase do personagem nos últimos 15 anos
Os exemplos não param aí, não. Se você pegar os mais vendidos de junho e julho, perceberá que a estratégia continua dando certo. “Pra mim, a mudança de paradigma começou para nós quando trouxemos a versão feminina do Thor, porque isso deixou as pessoas horrorizadas e, supostamente, as alienou, mas certamente rejuvenesceu o personagem e isso fez da revista uma das nossas mais vendidas. Antes, a publicação estava por aí, mas certamente não era um dos nossos best-sellers. Agora, três anos depois, ela [a Thor] ainda está por aí e estamos trazendo o Thor mais conhecido de volta”.
Você pode acusar que tudo isso é marketing, uma tentativa das editoras chamarem a atenção do público de uma forma que não teriam normalmente. E sim, TAMBÉM é isso. Não porque estejam fazendo as mudanças apenas pela divulgação, mas porque precisam dela para atrair os leitores e as leitoras que não estão no meio habitual de quadrinhos, mas podem se interessar pela mídia. “É como o Homem de Ferro, recentemente. As pessoas estão indignadas [por ter uma mulher usando a armadura]. Então enviando ameaças de morte para o Bendis, o que é triste. Mas, ao mesmo tempo, estamos recebendo mensagens de mães falando ‘minha filha chorou quando leu sobre isso porque agora ela tem um super-herói que ela ama dos filmes que ela realmente pode aspirar em ser’”.
A única coisa, aqui, é que Riri Williams não será mais, oficialmente, a “Homem de Ferro”. Ela adotará o alter-ego de Ironheart – o que, na real, faz mais sentido. Uma mulher trajando uma armadura e ocupando o espaço de Tony Stark no Universo Marvel não precisa ter o “Man” em seu nome – por outro lado, o gibi continuará a se chamar Invincible Iron Man, deixando claro para os leitores toda essa ligação.
Falando na Riri, é bom explicar que a personagem é uma das grandes apostas da nova Marvel NOW!, nova fase da editora que irá claramente aprofundar mais uma vez a diversidade de personagens e narrativas nos gibis. Só que a pergunta de UM MILHÃO DE DÓLARES surgiu: porque relançar toda a linha de quadrinhos mais uma vez, e, pior, reutilizando o título de uma das primeiras iniciativas do gênero?
“Mais ou menos entre seis meses e um ano atrás, começamos a ter licenciadores internacionais para publicações [como a Panini, no Brasil] e também de bens de consumo vindo até nós para falar que ‘queremos pegar esses títulos do Marvel NOW!’”, disse David Gabriel. “Acontece que o que começamos há quatro anos com o Marvel NOW! realmente pegou por todo o mundo. Nós temos usado o ‘NOW!’ de diferentes formas nos últimos anos, e, quando olhamos para algo para ser o nosso guarda-chuva de marketing no nosso mercado [dos EUA], pensamos que poderíamos vir com algo novo ou relançar algo que todo mundo já conhece”.
Aí, para evitar mais confusões no mercado e se aproveitar de uma marca já estabelecida, o Marvel NOW! retornou – agora com uma nova versão do logo original, um pouco modificada, mostrando que as bases estarão estremecidas após o final de Civil War II.
“Deadpool é o nosso Batman”
Há, ainda, outras pontas que ajudam a montar esse crescimento nos últimos anos. Uma delas – e, talvez, uma das mais importantes – é o Mercenário Tagarela. “Deadpool é o nosso Batman”, explicou o VP, que lembrou que mesmo colocando um gibi do mutante por US$ 9,99, algo que rolou em janeiro, houve um impacto positivo nas vendas. “O editor reclama quando falamos que devemos fazer isso novamente daqui uns meses, porque deu super certo. Praticamente dobrou as vendas de uma edição regular por US$ 3,99”.
Se você acha estranho ver o Deadpool vendendo tão bem, não se surpreenda – é uma curva que existe há alguns anos, inclusive antes até do filme do personagem. A surpresa MESMO é identificar que a febre de livros para colorir não só continua ainda ativa, como tem rendido alguns trocados para a Marvel Comics. “Costumávamos fazer a coleção Essentials [com arte em P&B], que eu odiava, então já tínhamos as artes. ‘Nós devemos começar a fazer livros para colorir’, eu disse. Todo mundo no escritório deu de ombros, ‘não é o nosso negócio’”, explicou o executivo. Deu certo: a categoria como um todo cresceu algo próximo dos 115%, explica o VP.
Também tem a questão da internacionalização – um impacto que é relevante no Brasil, também. Desde 2010, a distribuição de graphic novels em outros países é feita pela Hachette, mas o crescimento nesse setor é algo mais recente. “Nós começamos a concentrar nossos esforços nisso há uns dois anos, quando fui para as Feiras do Livro de Londres e Frankfurt, e nos encontramos com os representantes da Hachette, nos apresentando para eles da mesma forma que fazemos nos EUA. Esses territórios, esses representantes, realmente focaram nas HQs da Marvel. Os filmes, claro, também ajudaram”.
Sabe a Salvat, aquela que vende as enormes coleções da Marvel aqui no Brasil? Então, eles são do mesmo grupo da Hachette — e as coleções já estão em outros lugares do mundo, como a Inglaterra. ;)
Como nenhuma estratégia é perfeita, há ainda um grande buraco nos resultados da editora: as crianças, principalmente aquelas entre cinco e oito anos de idade e a aquelas em idade escolar. Por isso, eles preferem deixar essa responsabilidade com o outro lado do grupo do Mr. Mickey. “Nós temos a Disney Publishing, que faz um monte pelos personagens de filmes e animações. [...] Nós deixamos com eles”. Ainda assim, títulos como os da Ms. Marvel e da Garota-Esquilo conseguem trazer um público mais adolescente, junto com os adultos habituais. “E, talvez, um monte de títulos protagonizados por mulheres estão chegando nas crianças. Elas leem muito...”.
Pode ser mais sorte do que juízo, mas tudo isso tá dando certo. Diversidade, afinal, importa. ;)